Poema à Última Luz do Dia
No cais gasto dos meus desenganos,
acendo cigarros com restos de aurora,
o sol despe-se atrás dos oceânicos anos
como quem se despede sem ir embora.
Sou vários em mim, como Pessoa dizia,
um tédio com brilhos, um vinho por abrir,
mas há no poente uma estranha alegria,
um fogo cansado que insiste em sorrir.
O lago adormece em tons carmesim,
as sombras alongam memórias antigas,
e eu, que nunca fui bem daqui nem de mim,
conto as memórias como Sabina canta cantigas.
Há beijos que sabem a fim de verão,
há olhos que brilham como faróis de aldeia,
e o pôr do sol é um velho ladrão
que rouba o silêncio e deita-o na areia.
Dá-me esta luz que não fere nem cega,
dá-me este instante que arde mas passa,
que eu canto a saudade como quem navega
num barco parado, à deriva na praça.
E se a noite vier sem pedir licença,
com as ruas vazias e as portas fechadas,
hei de brindar ao sol com a tua ausência
e dançar com as sombras nas madrugadas.
Paulo Brites
Lago de Alqueva - Alentejo - Poemas de Paulo Brites

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