Poema Bêbedo Perdido num Bolso de Casaco Velho

 
Poema Bêbedo Perdido num Bolso de Casaco Velho


Poema Bêbedo Perdido num Bolso de Casaco Velho


Noutros tempos discutia-se à mesa,
vinho tinto, pão duro, alma acesa,
hoje bastam três frases no ex-Twitter,
pra seres herege, fascista, ou “hater”.

Já não há debate, só trincheira,
cada um com a sua bandeira,
e se ousas pensar diferente —
és sentença, és peste, és serpente.

Confundem frontalidade com insulto,
trocam verdades por likes em tumulto,
o algoritmo é o novo Messias,
vende-nos certezas, mata-nos os dias.

Se digo "não sei", chamam-me burro,
se digo "penso", sou só mais um murro,
porque hoje o que importa é ter razão,
não sentir, não ceder, não ter coração.

E o amor? Ah, o amor… esse palhaço,
vestido de filtros, apps no regaço.
Dizem "amo-te" como quem diz "bom dia",
mas somem-se ao primeiro raio de melancolia.

Já ninguém ama com febre e tropeço,
é tudo bonito, higiénico, sem excesso.
Não há cartas, nem ciúme, nem espera,
há emojis, silêncios e "vemo-nos sexta-feira".

No meio disto, eu? Um velho trovador,
com a língua afiada e ressaca de amor,
a gritar verdades no meio do ruído,
a ser cancelado por ter um sentido.

Que saudades de quando errar era humano,
e amar era sujo, carnal, cigano.
Agora é tudo asséptico, tão certinho,
com manual de uso, mapa e caminho.

Vivemos num mundo de algodão doce,
onde pensar diferente é crime precoce.
E o amor? Esse… já morreu sem aviso,
num perfil privado, sem beijo, nem juízo.


Paulo Brites
2025.07.05


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