A Metade Que Me Falta e Que Me Sobra

 
A Metade Que Me Falta e Que Me Sobra


A Metade Que Me Falta e Que Me Sobra


Gostar dela é como fumar à socapa
no quintal da infância, à meia-luz,
um pecado com sabor a papa
e cheiro a terra molhada e Santa Cruz.

Ela tem mãos de bebé, sem defesa,
mas é capaz de desmontar um homem
com um afago só — de natureza
a fazer da fraqueza um pronome.

Tem cabelo cor de mel... de abelhas bêbadas,
que escorre por ela como se dançasse,
como se cada fio trouxesse as rédeas
do tempo que em mim se desfaz e passa.

E aquele sorriso! Meu Deus, esse riso!
Gritante, rouco, sem pedir licença,
que entra pela alma como um aviso
de que amar é perder a resistência.

Acredita em reencarnações e sortilégios,
em vidas depois da última viagem.
Mas diz — entre goles e sacrilégios —
que a morte põe fim a toda a paisagem.

É poetiza de bar, beata de copo,
é santa nos gestos e herege na cama.
Diz que o amor é um jogo estúpido e tolo,
mas joga comigo, e perde — e ama.

E eu? Eu sou um verso a meio de um guardanapo,
um tipo que escreve só pra não chorar,
um malandro que troca o mapa pelo acaso
e ainda assim volta sempre ao mesmo lugar.

Gostar dela é como acordar no dia errado
com vontade de dormir até ao fim do mês,
mas ela entra na vida de lado
e transforma o caos numa cortês embriaguez.

É a metade que me falta e que me enerva,
a pausa no cigarro, a pressa no beijo,
a mulher que se serve em prosa e conserva
e me dá febre sem que eu deseje.


Paulo Brites


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