O Ocaso do Acaso de Álvaro de Campos
Acaso
No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
Perco-me subitamente da visão imediata,
estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
e a outra rapariga passa.
Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
e tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.
Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar.
Se calhar, ou até sem calhar,
maravilha das celebridades!
Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
de uma rapariga loira,
mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade,
numa outra espécie de rua;
Porque todas as recordações são a mesma recordação,
tudo que foi é a mesma morte,
ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?
Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal...
Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isso é o mesmo também afinal.
Álvaro de Campos
Monsaraz - Fernando Pessoa

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